Que espaço de privilégio você deu para um negro existir? Ativista cria movimento para pagar inscrição de estudantes negros no Enem

Por Antônia Beatriz Pires e Thais Cal, estudantes de Jornalismo da UFV

A morte de George Floyd, em Minneapolis (EUA), revoltou o mundo inteiro. Foi levantada a hashtag #blacklivesmatter nas redes sociais, não só pela morte absurda por uma ação policial, mas porque foi mais um homem negro sendo morto, mais uma ação que escancarou a realidade do racismo enraizado. Na mesma semana, no Brasil, houve a morte do Miguel Otávio. Ele morreu aos cinco anos de idade após cair do nono andar de um prédio. Enquanto a mãe passeava com o cachorro da família, seu filho ficou aos cuidados da patroa, Sari Corte Real. Ela foi condenada por homicídio culposo e liberada pela fiança de 20 mil reais.

Diante disso, houve uma comoção dos internautas, em que foram levantadas bandeiras e hashtags dizendo: “Vidas negras importam”. Mas no dia a dia, o que você tem feito para que vidas negras de fato importem? Como tem usado seus privilégios, espaços para dar lugar de fala a essas pessoas que não são ouvidas?

Maria Mariana, 27 anos, formada em relações internacionais, reside hoje na França, moveu uma ação na sua rede para pagar a taxa de inscrição do Enem para vestibulandos negros e baixa renda. Ela não esperava que a sua atitude chegaria a tamanha proporção, levantando pessoas dispostas a contribuir com o valor da taxa.

Gente, gostaria de dividir com vocês uma coisa: Eu junto ao grupo de apoiadores estaremos até o último minuto do dia 10/06 pagando os boletos do ENEM pra galera. Depois disso, a verba que ficar vai ser direcionada a CASA DE APOIO LBGTQI+ (com foco em pessoas trans) ✊🏾 🏳️‍🌈

A cantora pop Duda Beat ficou admirada com o gesto de Mariana e se propôs a ajudar também.

Desse modo, utilizamos nosso espaço para dar voz a Mariana para que ela pudesse falar da sua atitude e todo o impacto que ela causou.

Antônia Pires: Mariana, como essa ação despertou em você? Esperava pela proporção alcançada?

Maria Mariana: Não. Eu não imaginava que tomaria a proporção que tomou.
Acho que nenhum “anônimo” sabe quando vai “bombar”, né? Mas foi incrível perceber que uma atitude, mínima que seja, motivou muitas outras pessoas.

Thais Cal: Maria, esse movimento foi aberto para todos os vestibulando do Brasil? Você tem ideia de quantas pessoas foram beneficiadas?

MM: Sim, para todos do Brasil. Eu paguei um total de 107 boletos.

AP: Os vestibulandos tiveram que comprovar baixa renda?

MM: Não. Eu parti do princípio de que ser negro já te deixa em desvantagem em todos os aspectos. Então, mesmo que eu tenha pago a taxa pra uma pessoa que tenha condições, sei que foram 85 reais [preço de uma inscrição individual no Enem] que essa pessoa economizou. Entende?

TC: Como foi a adesão ao projeto? Muitas pessoas entraram em contato pra ajudar?

MM: MUITA GENTE! Isso foi o que mais me assustou!
O número de pessoas ajudando e querendo ajudar foi milhares de vezes maior que o número de vestibulandos.

AP: Falando em desvantagem, incluindo a acadêmica… O livro “Mulheres, raça e classe,” de Ângela Davis, retrata a vontade que os negros (ex-escravos) tinham de estudar, inclusive, mais que os brancos. Mas sabemos que não tinham espaços.
Você, mulher negra, fazendo parte da elite intelectual, poderia falar desses espaços?

MM: Por essa ação mesmo. Eu, enquanto mulher negra e lésbica em posição de privilégio, preciso, mesmo que de pouco em pouco, abrir espaço para que os meus se façam presentes e ocupem os mesmos ou melhores lugares que o meu. A única forma de fazer isso é estudando. Eu sei que se eu consigo profissionalizar e/ou colocar, mesmo que seja 1 negro na universidade, será menos 1 pra viver a opressão dessa sociedade predominantemente branca e racista. E não é só uma questão histórica e acadêmica. Colocar negros em lugares de destaque tornou-se uma defesa. Sabe quantos negros não sabem ou não são capazes de se defender de, por exemplo, uma frase racista? Sabe quantos não conseguem perceber uma frase racista direcionadas a eles? São muitos. É um processo de alfabetização anti-racista.


TC: Imaginamos que pra chegar na posição que você ocupa hoje não foi fácil. Queríamos saber quais os principais desafios que você enfrentou?


MM: Não. Não foi e ainda não é.
Eu vivo na Europa, continente branco. Na França, um país arcaico.

Eu lido constantemente com o racismo. Quando, por exemplo, falo que sou brasileira e eles automaticamente perguntam como é morar na favela e se surpreendem quando descobrem que cresci na Zona Sul [do Rio de Janeiro]. Ou então, que não sou estudante bolsista.

Tenho que lidar com a desvantagem de ter menos horas pra estudar porque eu tenho 2 empregos. O que não me frustra. Eu amo trabalhar e amo meus trabalhos.

Lido com a saudade da minha família. Venho de uma muito grande e tenho muitos irmãos.

Lido constantemente com a baixa autoestima porque trabalho e estudo muito e ultimamente quase não tenho tido tempo pra cuidar de mim.

Lido também com as inúmeras vezes na semana em que penso em desistir. Jogar tudo pro alto, voltar pro meu país e… bom, eu lembro de todas as pessoas que eu ajudo e mais ainda das pessoas que quero ajudar e passa.

Quando você está em um país que não é seu, sozinha, sem ninguém (apesar de ter uma tia aqui, mas moramos em cidades diferentes), tudo aflora. Da alegria à tristeza. Além das questões raciais, de gênero. Eu me bato (confronto) todos os dias com alguém porque a ideia que eles têm aqui sobre esses questionamentos é bem assustadora.

TC: E quem eram suas inspirações?
MM: Minha maior inspiração são minhas irmãs.
Mas tenho como referência Angela Davis, Djamila Ribeiro, Ana Maria Gonçalves, Maya Angelou. Whitney que é minha rainha! Malcolm, Martin, Mandela.

AP: Você gostaria de deixar uma fala em destaque?

MM: “Não é só uma questão histórica e academia. Colocar negros em lugares de destaque se tornou uma defesa. É preciso que todos saibam, por exemplo, reconhecer uma fala racista. Se tornou um processo de alfabetização anti-racista.”

Dados: Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) o número de jovens brancos no ensino superior em 2019 era 36,1%. Já olhando apenas para os jovens negros (pretos ou pardos), o índice cai pela metade: 18,3%.

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