Imagem: Ely Rosa/ arquivo pessoal

“Quem era aquele neguinho?” Pokas Ideia convida Ely Rosa para contar o racismo em sua trajetória

Por Thais Pereira Cal, estudante de Jornalismo da UFV

Não é novidade para ninguém que a cada dia fica mais difícil se inserir no mercado de trabalho, embora essa seja uma dificuldade que sempre foi realidade para a população negra no Brasil.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE em seus dados mais recentes, cerca de 15% da população preta e parda estava desempregada em 2019, enquanto estes eram maioria em trabalhos com menor remuneração, como construção civil (63%) e serviços domésticos (66%).

O racismo no mercado de trabalho é um dos temas que iremos discutir hoje com Ely Rosa, formado em Direito pela UFV, ex Pró Reitor de Gestão de Pessoas na Universidade Federal de Viçosa, lugar onde viveu, cresceu e sofreu racismo diversas vezes.

Imagem: Ely Rosa/ arquivo pessoal
Ely Rosa em evento da Controladoria Geral da União na UFV.
Imagem: Ely Rosa/ arquivo pessoal.

Thais Cal: Como você vê o racismo?

Ely Rosa: Vejo como o nível de caráter e personalidade de quem o pratica.  Ignorância principalmente.  Na verdade, reflete o estado moral, ainda muito atrasado na sua maneira de pensar.  Somos  uma sociedade extremamente desigual em termos econômicos e o racismo foi uma das heranças da cultura portuguesa deixada aqui. Claro que em outros países colonizados por ingleses, franceses, espanhóis, e outras metrópoles européias, o racismo também está presente, fortemente. As pessoas atrasadas têm necessidade de tentar diminuir o outro para tentar mostrar superioridade. Se antigamente, a discriminação era para legitimar a exploração, hoje, esta situação revela a falta de cultura, e este preconceito é aprendido em casa, pois um adulto racista aprendeu dentro de casa a considerar o negro, o mulato, como um inferior. O Brasil alimenta isto, afinal, “…mas como a cor não pega mulata, mulata eu quero seu amor.”

TC: Você já foi vítima de racismo?

ER: Óbvio, qual preto brasileiro que não foi?  Toda criança preta, nas brincadeiras com coleguinhas, vai ouvir apelidos racistas que estas crianças aprenderam em casa, com os pais. Era muito comum nas décadas de 70 e 80 você ter professores em colégios, no alto de suas autoridades, fazerem brincadeiras racistas em sala de aula. Lembro-me de um professor de Física, em um colégio público aqui em Viçosa na década de 80.  Ele se dirigia diretamente a mim, rindo como se estivesse brincando, dizendo que preto não era raça, dizendo conceitos depreciativos sobres os pretos. Ele era a autoridade em sala.  Eu, o aluno que precisava do colégio. Lembro-me de quando entrei no curso de Direito da UFV, em 1995, na primeira semana fui abordado por um aluno (viçosense) perguntando-me de qual “faculdade” eu vinha transferido.   Ele achava que um pobre preto não teria condições de passar no então vestibular de 30 por vaga.  Achava ele que eu tinha entrado numa particular, e dado um jeito de ser transferido para a UFV.  Respondi que eu havia entrado na primeira chamada, pelo vestibular, na época sem cotas. Era o racismo na mente dele de que um preto não era capaz.Outra situação interessante é que sou palestrante espírita. Há uns cinco anos, fui há um Centro Espírita de uma cidade aqui da região, onde já palestrava há um bom tempo. Mas neste dia, ao final de minha palestra, veio um senhor de uns 70 anos me cumprimentar e me dar os parabéns, pois havia gostado demais da minha palestra, e dizer que nunca naquela cidade ele havia visto algo de tanta qualidade, confessando-me que quando me viu no início da palestra não deu nada por mim.  Ou seja, no seu racismo entranhado na alma, ele nunca imaginava de que da boca de um preto poderia ouvir algumas verdades cristãs espíritas. Ele não conhece de cristianismo, nem de espiritismo. E  não percebe o racismo em si.

TC: Você acha que devemos enfrentar? Se sim, como?

ER: Os racistas têm de ser colocados em seus devidos lugares.  Não podemos deixá-los prevalecer, estejam eles na posição que estiverem, precisam ser enfrentados de todas as formas.  Pela lei,  pelo intelecto,  pela postura moral e superior. Não tenho esperança alguma de que no mundo o racismo irá acabar nos próximos 200 anos.  Isto ainda está na alma do ser humano, o que não é desculpa.   Mas os pretos, em especial, os brasileiros, precisam entender que somente através de sua melhoria econômica, de ter condições financeiras, de ser um cidadão capaz de entrar em qualquer loja e comprar o que quiser, de ter condições de dar uma excelente educação a seus filhos,  aí sim, você minimiza  o preconceito racial. Pois, no dia em que os pretos brasileiros tiverem poder de consumo, eles serão respeitados, apesar do racismo ainda velado. Mas, enquanto os negros tiverem as piores condições de moradia, os piores níveis de educação, sem acesso às melhores oportunidades oferecidas à vida de qualquer cidadão, vão continuar sendo cidadãos de terceira classe, se conformando com isso e achando normal. É importante se conscientizar da necessidade e obrigatoriedade de estudar muito seus filhos.   Sem isso, esqueça. Se o negro continuar sendo o trabalhador de salário mínimo, o racismo em sua pele será cada dia mais doído. 

TC: Quando você percebeu que sua cor era um diferencial?

ER: No prezinho. Eu era a única criança negra da sala.  Não era colégio público, mas particular. As demais famílias negras de Viçosa não tinham condições de pagar o maternal.  Meu pai pagava com dificuldade. Éramos a única família negra da rua.

TC: Como foi sua trajetória para chegar onde está hoje?

ER: Meu pai era ferroviário e minha mãe, dona de casa. Sempre colocaram todos os filhos para estudar. Eu era o caçula, minha casa tinha muitos livros dos meus irmãos mais velhos, portanto, os via lendo e desejava isto também.   Livros, revistas, jornais… Em minha infância e adolescência, eram os meus objetos de consumo, o problema era ter dinheiro para comprar. Entrei  no curso de Economia da UFV, mas não me formei.  Havia feito contabilidade e fui trabalhar em uma associação aqui de Viçosa: Um preto no escritório. Em 1993, passei no concurso para técnico da UFV. Único negro no meio de 40 pessoas.  A própria  UFV olhava-me com uma interrogação nos rostos:“ Quem era aquele  neguinho?”  Em 1995, passei no vestibular de Direito. Fazendo Direito e trabalhando diretamente em um setor que lidava com muita  legislação facilitou-me muito ser reconhecido por outros servidores  da época.  Fui ser Diretor jurídico da ASAV,  Associação Sindical dos Servidores.  Tendo conhecimento político e entendimento mínimo jurídico da situação dos servidores, acabei sendo conhecido pela  UFV  inteira.   Ser um servidor que veio da Diretoria de Recursos Humanos – DRH,  ainda novato, mas com conhecimento que transmitia aos nossos colegas, em nossas  concorridas assembléias da época também incomodou muita gente.  Mas, a turma de  “peão do campo”, boa parte dela negra, via com muita satisfação um negro vencendo as discussões políticas da época. Lembro-me que fui convidado, um dia, para uma pequena explanação no Projeto Veredas, para falar a mais de 500  professoras da rede pública  sobre a a então Reforma da Previdência de 2003. Esta fase da minha vida era trabalhar durante o dia, estudar à noite, ir para a biblioteca todo sábado, estudar aos domingos e feriados, cansado o tempo todo. Em 2009, fui convidado a fazer parte da Administração da UFV e fiquei até 2019. São 27 anos de serviço público.

TC: Já julgaram seu cargo pela sua cor?

ER: Sim. Como disse, quando cheguei à DRH, vários servidores da UFV olhavam-me com espanto. Eu não era o faxineiro nem era o contínuo.

TC: Como você vê o racismo no mundo acadêmico?  Já presenciou algum ato?

ER: Temos um caso clássico ocorrido em 2005 ou 2006. Um servidor preto, militante da ASAV, foi à horta do Fundão conscientizar os trabalhadores do setor para participarem da greve da época. Lá, foi insultado, desmerecido e xingado por um outro servidor, contrário  à greve.  Foi chamado de macaco e outros insultos. O servidor insultado voltou à ASAV, relatou o fato e houve uma denúncia formal  à Ouvidoria da UFV. Dado à gravidade da coisa, o servidor que insultou foi orientado a ir à ASAV.  Procurou o ofendido e pediu-lhe mil desculpas, que o caso deveria morrer ali.  Na verdade, ele foi informado que em um processo administrativo, ou até  mesmo judicial, ele corria risco de demissão. O ofendido não quis levar  às últimas consequências. Tem outro caso clássico na UFV: lá pelo início dos anos 80,  havia um presidente  do Diretório Central do Estudantes – DCE  negro,  apelidado de Petróleo. Esse tipo de apelido é para desmerecer, marcar, estigmatizá-lo pela cor. Também lá pelos anos 80, um estudante da  UFV viçosense, negro, foi apelidado pelos demais estudantes de  Idi Amin Dadá, o notório ditador africano de Uganda. A nada inocente brincadeira, que se torna uma gozação ofensiva, vem no intuito de diminuir o indivíduo. Hoje, em pleno século XXI, em uma Universidade, uma manifestação racista explícita, por si só, será rejeitada de pronto. O racista teme a exposição em redes sociais. Já  a lei não o intimida.

TC: O que você pensa sobre cotas?

ER: São extremamente necessárias e justas. O fato de eu ou meus irmãos não termos necessitado delas para entrar no curso superior é exceção, somos um ponto fora da curva. Há que se criar oportunidade sim para as pessoas pretas e pardas.  Retribuir não como um presente às pessoas de cor o acesso ao ensino superior, mas utilizar o sistema de cotas para equilibrar o desnível social/educacional vigente na nossa sociedade. A questão das cotas tem de existir até que nossa sociedade deixe de ser tão desigual.  No mesmo sentido,  cotas  no serviço público e cotas para acesso a pós-graduação.

TC: Qual a diferença você percebe da sua época de discente para agora?

ER: Acho o discente de hoje muito pouco politizado. Poucos levantam e levam  as bandeiras dos coletivos e entendem uma “Marcha Nico Lopes” como uma manifestação política. Atualmente o espírito  é somente festa. Não tenho dúvida de que há muito mais negros e pobres nas universidades hoje do que há 20 anos passados. Temos mais alguns docentes negros em nosso quadro. Mas, apesar das cotas,  o quadro técnico-administrativo é majoritariamente branco e, pela minha percepção, o quantitativo de negros tem diminuído. Tem uma explicação para isto. A  UFV absorveu grande número de servidores nas décadas de 60, 70 e 80 para trabalhos  braçais, de manutenção.  Desse povo pobre vinham muitos negros: os  serviçais.  A partir do momento que o concurso público começou a ser aprimorado e mais concorrido,  faltaram  os negros qualificados que, em sua maioria,  não vinham de boas escolas e não conseguiam concorrer.  O  discurso meritocrático  não pode ser utilizado para barrar o acesso da camada pobre, boa parte negra, da  população. Com  a política de cotas, isso  melhorou um pouquinho, mas ainda muito pouco.

TC: Como você vê o racismo em Viçosa? Em quais lugares você vê o racismo de forma mais descarada?

ER: Viçosa reflete  o Brasil.  Não é diferente aqui o que se passa no restante do país.  Os pretos pobres acham que não têm lugar no mundo e, sem consciência, entendem que está tudo certo. Não está. Alguns clubes em Viçosa, lá pelos anos 70 e 80, não  permitiam o acesso de negros em suas dependências. Viçosa  criou  um clube  para os operários,  a Liga Operária, frequentada na essência  pelos  pretos.  Era um  “apartheid”  semi-oficial.  Esses clubes todos praticamente não têm mais nenhuma importância  na cidade.  O racismo  está  escancarado nas nossas lojas. Observa: você consegue contar quantos vendedores negros existem? O país inteiro é assim. Sem educação, sem formação, resta sempre  ao negro os piores empregos e as piores colocações. Um ciclo vicioso. A questão aí é que a  população negra tem de enxergar isso e sair desta situação  melhorando economicamente. Temos uns três ou quatro vereadores negros. Fizeram alguma proposta  de âmbito municipal para a população negra de Viçosa? Não, nenhuma.   

TC: Para você, como pessoas não negras podem ajudar?

ER: Contrate negros. Dê uma bolsa de estudo para uma criança negra. Incentive-a a estudar e estudar cada vez mais. Corrija as posturas de fala e educação das suas crianças dentro de casa; Quebre os preconceitos que ainda trazem dos bisavós e em todos os aspectos, respeite o pedreiro, o jardineiro, o gari, o porteiro, a doméstica… E estudar um pouquinho mais de genética.  A raça humana é única.

TC: O que você diria para as pessoas que já sofreram racismo?

ER: Não abaixe a cabeça para a vida. É por conta dessa agressão que você deve se levantar ainda mais. Imponha-se. O mundo está longe de mudar.  É tendo consciência do seu direito que o cidadão faz verdadeiramente a Lei ser aplicada. Priorize a melhoria de sua vida sempre. Nada dói mais no racista do que ver a sua vítima sendo vitoriosa.

Editoria Pokas Ideia.

7 comentários sobre ““Quem era aquele neguinho?” Pokas Ideia convida Ely Rosa para contar o racismo em sua trajetória

  1. A entrevista do Ely foi sensacional é deixou a vista o problema do racismo no Brasil e lógico na nossa cidade, viçosa.
    Mas deixo aqui mais pequeno exemplo.
    Quantos médicos, dentistas, juízes temos em viçosa, que são verdadeiramente negros?

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  2. Parabéns Ely Rosa! É merecedor de todas as conquistas e muito competente.

    “Suba o primeiro degrau com fé. Não é necessário que você veja toda a escada. Apenas dê o primeiro passo”.

    Martin Luther King Jr.

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  3. Muito boa a entrevista concedida pelo meu irmão, Ely Rosa, a esse jornal. Ele mostra com clareza o racismo ainda presente em nossa sociedade brasileira em todos os setores sociais. A maneira como nós encontramos para vencer essa barreira chamada ” preconceito racial” foi estudando e demonstrando inteligência para adquirir o respeito por parte dos transgressores. Sempre disse a ele:” Nós vencemos!”, apesar das dificuldades encontradas.

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  4. Parabéns pela entrevista, Ely! Precisamos denunciar o racismo que segrega, exclui e mata. O genocídio de jovens negros é visível quando olhamos as estatísticas dos assassinados pela polícia. E mesmo negros de classe média ou alta temem por seus filhos. Há um depoimento da atriz negra Thaís Araújo que fala do medo que ela tem de seu filho, com o também ator negro Lázaro Ramos, ser abordado pela polícia, porque nessa hora não há diferença em você ser filho de atores globais ou filho de uma empregada doméstica porque será discriminado pela cor da sua pele. Aliás, nessas horas não adianta nem você ser um ator global, como foi o caso do jovem ator Vinícius Romão, que foi preso por engano por ter sido acusado de roubar a bolsa de uma mulher. A mulher o acusou, mas quando foram olhar o vídeo de segurança que filmou o assalto, o rapaz que a assaltou era branco.
    Os negros, desde o século XVI, ao lado dos índios, são as maiores vítimas da violência no Brasil. Foram as duas etnias mais trucidadas em toda nossa história. Milhões foram dizimados nesses 514 anos. De acordo com o Banco Mundial, os negros têm mais do que o dobro de chance de serem assassinados no Brasil, quando comparados à população branca. Precisamos de negros comprometidos com essa causa na política. Só com maior rigor nas leis anti-racistas podemos vislumbrar um futuro de igualdade.

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